Os filmes tratam sobre bullying, racismo, meio ambiente e cultura dentro e fora da escola
As produções audiovisuais são, sem dúvida, potentes ferramentas de ensino e aprendizagem dentro do espaço escolar. Mas e se, além de assistir, os alunos e alunas também pudessem criar seus próprios filmes? Foi isso que pensou a bibliotecária Sheila Rodrigues, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Newton Amaral Franco, em Contagem (MG), quando uniu literatura, fotografia e animação e, junto aos estudantes do 1º ao 5º anos, criou o projeto “Luz, Câmera e Ação”, um dos finalistas da 5ª edição do Desafio Criativos da Escola que também em julho de 2019 teve dois filmes exibidos no Anima Mundi, o maior festival internacional de animação.
Deixa a criança falar
A ideia teve início ainda em 2017, a partir de ciclos de debate sobre mais de 40 títulos literários. O objetivo era despertar a reflexão sobre a identidade e ancestralidade das crianças antes mesmo de começarem a botar a mão na massa. Além da análise dos diversos gêneros narrativos, as meninas e meninos também trouxeram depoimentos e objetos que contavam a trajetória de suas famílias.
“Por meio da aula de produção de texto podemos ir para a tela de cinema. Eu era muito tímido, mas quando estava na biblioteca fazendo animação, eu perdia um pouco da minha timidez, o que me fez me soltar cada dia mais”, conta o estudante Alexandre Augusto, hoje no 7º ano, roteirista e animador do curta “Dia de Chuva”.
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“As crianças trouxeram algumas memórias e sentimentos, já que os livros despertam a vontade de dizer”, conta Sheila, que identificou que a maioria dizia se sentir triste por não estar confortável com sua própria aparência. “Todas as crianças falaram sobre aparência e também sobre a cor da pele. Eu vi que era importante deixá-los falar e também trazer outras pessoas que os representasse”.
“Luz, câmera e ação”
Munidos de ferramentas, os alunos e alunas passaram à prática. Elaboraram dezenas de histórias e, a partir de uma votação democrática, escolheram nove roteiros escritos por eles mesmos para serem produzidos como curtas-metragens.
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Sete deles foram feitos com uma técnica de animação chamada “stop motion”, que cria movimento a partir da sequência de várias fotografias. “Planeta desconhecido”, “Flautistas de Contagem”, “Cabruum”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Dia de Chuva”, “Jardim Encantado” e “Menino do Morro” abordam com uma enorme riqueza imagética temas como exclusão, bullying, racismo, degradação do meio ambiente e cultura local.
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Os únicos dois curtas-metragens que foram encenados pelos próprios alunos são “Boneca Lulu” e “Menina Estranha”. Este último conta a história autobiográfica de uma aluna que sofria com o isolamento social, tanto em casa como na escola. Após a produção do filme, que tem duração de 23 minutos, a menina viveu um processo de metamorfose, com aumento significativo de sua autoestima.
“Antigamente, eu era igual a Judite (protagonista do filme autobiográfico que ela escreveu para o projeto). Me sentia como ela em qualquer lugar que eu ia, mas depois do projeto eu me sinto melhor e mais confortável com outras pessoas, mesmo que não as conheça”, conta a estudante que criou Menina Estranha, Kettlen Camily, agora no 7º ano do Ensino Fundamental.
Assim como Kettlen, outros estudantes também mudaram suas perspectivas sobre si mesmos após o projeto. Se no início, todos os desenhos eram pintados de rosa salmão, até mesmo os autoretratos das crianças negras e de descendência indígena, com o passar do tempo, os lápis de cor marrom e laranja começaram a aparecer nos desenhos.
“Nesse processo de discussão, eles foram amadurecendo, o autorretrato começou a mudar. O lápis marrom ou lápis laranja começaram a aparecer e eles começaram a se retratar de acordo com sua cor de pele. E, depois, também nas animações”, conta a bibliotecária Sheila.
Alexandre Augusto lembra que, de princípio, as crianças não imaginavam que os trabalhos pudessem se tornar realmente um filme. “A gente pensou que fosse só uma brincadeira, uma atividade normal”, conta o menino, que tomou gosto pela sétima arte, mesmo já tendo deixado a escola. “Depois disso tive muito mais gosto por cinema, desenhos, animações… e busquei muito por isso. Eu adorei toda essa experiência, que vai crescendo cada vez mais”.
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Todos os nove curtas foram lançados no Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Alguns dos alunos tiveram a oportunidade de ir pela primeira vez a uma sala de cinema vendo seus nomes nos créditos e, assim, sendo reconhecidos como autores de suas próprias histórias.
“Depois que a gente fez os filmes, e começou a divulgar o projeto na televisão, a escola mudou, porque todo mundo se animou a continuar com esse tipo de ideia, até porque é meio difícil ver esse tipo de projeto e matéria nas outras escolas. E isso deixa os alunos mais empolgados para estudar”, pontua Kettlen Camily.
Uma aldeia inteira educando as crianças
O projeto encantou não somente as crianças, mas também a gestão e todas as outras equipes da escola, que prontamente começaram a participar da iniciativa. “Os professores e professoras toparam tanto participar, que colocaram atividades que contribuíssem com o cinema dentro de suas programações”, relembra Sheila
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A educadora de português os muniu de ferramentas para a produção textual. Nas aulas de matemática, os alunos entendiam quais eram os cálculos que deveriam fazer entre a câmera e o objeto gravado. Já na disciplina de história, os estudantes puderam se debruçar na memória local e criar uma maquete. Com a educação física, exercitar a respiração e concentração e demais técnicas de encenação.
Para além do corpo docente, toda a comunidade escolar se envolveu nas ações do “Luz, Câmera e Ação”, entendendo o projeto também como deles.
Os funcionários da cantina, portaria e merenda foram entrevistados e também fizeram participações especiais em alguns dos filmes. “Pela primeira vez na história da nossa escola, todos os segmentos participaram”, faz questão de pontuar a bibliotecária, que entende a importância da coletividade.
Outras pessoas do entorno e da cidade também se voluntariaram a colaborar, seja com oficinas de construção de storyboard, técnicas de enquadramento, luz ou com aulas de filmagem e perspectiva. Também realizaram um estudo de sonoplastia a partir de materiais recicláveis, instrumentos musicais e o próprio corpo para a construção das trilhas sonoras, bem como a importância do som e do silêncio na construção da trama.
Reconhecimento e representatividade
O grupo já acumula importantes conquistas: quatro dos filmes foram selecionados no FestCurtasBH, um dos mais representativos festivais de cinema da capital mineira. E, em julho de 2019, um ônibus levou os pequenos e pequenas cineastas rumo ao Rio de Janeiro (RJ), onde os filmes “Dia de Chuva” e “Chapeuzinho Vermelho” foram apresentados no maior festival de animação da América Latina, o Anima Mundi.
Os filmes foram selecionados, ainda, pelo Mumia Festival e, em 2020, pretendem produzir e gravar os roteiros escritos em 2019 e também lançar a exposição “Meu cabelo é do jeito que eu quero”, que tem como objetivo ampliar a autoestima e trabalhar o empoderamento dos estudantes por meio da identidade.
Redação: Jéssica Moreira, com contribuição de Andrea Xavier
Imagens: Divulgação