A literatura de cordel serviu como ferramenta de aproximação das estudantes com a comunidade para falar sobre a questão de gênero
A literatura de cordel é um patrimônio cultural brasileiro. No nordeste, essa tradição, que mistura versos e gravuras, contém imensa força popular: o que nela está escrito reproduz e influencia hábitos do cotidiano local. Então, por que não utilizá-la para combater o machismo e mostrar para a comunidade a importância de pensar a equidade de gênero?
A produção de cordel feminista é uma das ideias do grupo Dice – Será que a sociedade ainda não entendeu?, criado em 2017 por estudantes do ensino médio da Escola Estadual de Educação Profissional Edson Queiroz, localizada em Cascavel (CE). A iniciativa cria ações e debates sobre o feminismo, atuando na própria escola e também na comunidade do entorno. O Dice foi um dos 40 finalistas do Desafio Criativos da Escola 2019.
Francisca de Miranda, uma das idealizadoras do DICE e hoje já formada, relembra que a ideia surgiu durante um almoço entre ela, a colega Riana Monteiro e o professor de Filosofia e Sociologia Claudio Simplorio. “Queríamos fazer um projeto que, mais do que ganhar nota, pudesse ajudar as pessoas ao nosso redor a refletir sobre como o machismo é [algo] grave”.
Orientador do coletivo, Cláudio complementa que elas queriam entender os diversos papeis da mulher na sociedade. “Elas sofriam com o preconceito do nosso machismo exacerbado, e queriam discutir isso na escola, sentindo que ainda não havia espaço para as mulheres”.
Atuação do projeto se espraiou no calendário escolar
O projeto, que recebeu o nome da deusa grega da justiça Dice, se arvorou em diversas ações, realizadas tanto na escola quanto fora dela. Em seu próprio território, o grupo juntou rodas de acolhimento para debater o feminismo, culminando na produção de uma apostila que versa sobre o machismo e formas de combatê-lo.
A parte que Francisca mais gostava nessas rodas de fortalecimento da mulher era a oportunidade de conversar entre suas pares: “Fomos até as escolas, falamos com as gestoras, e conseguimos ter um diálogo bacana sobre as dificuldades de ser mulher. A parte que eu mais gostei foi de conversar com os alunos nas escolas”. As atividades incluíam diálogos, discussões sobre músicas machistas e bate-papos.
Dentro do currículo da sala de aula, o Dice quebrantou estereótipos científicos adicionando a produção acadêmica feminina dentro das aulas de sociologia e filosofia, como explica Cláudio: “O mundo da produção teórica é masculinizado demais, e foi por sugestão das próprias alunas que começamos a inserir as mulheres que marcaram história na nossa aula”. Hannah Arendt, Angela Davis, Viviane Mosé e outras pesquisadoras foram trabalhadas no currículo.
Houve também uma mudança no calendário escolar. Ao invés de só se falar sobre mulheres no 8 de março, o DICE espraiou o tema de feminismo durante todo o ano: “Por exemplo, no final do ano, havia um projeto sobre cultura afro, então aproveitamos para trazer mulheres negras para o centro do debate”, complementa Cláudio.
O cordel como meio de aproximação
A escola profissionalizante fica em Cascavel, uma cidade do interior do Ceará. É um dos desafios do projeto combater lugares-comuns e preconceitos locais, segundo Cláudio. “As ideias que circulam na nossa comunidade são muitas vezes rígidas e tradicionalistas. Trabalhar a questão de gênero por comunidades dominadas por facções ou cultura religiosa, com fortes tradições enraizadas, tem sido um grande desafio para as garotas”.
A aluna Rayonara Pinheiro, que faz parte da segunda leva de garotas a integrar o DICE, concorda com o tamanho do desafio: “Enquanto grupo, já presenciamos situações bem complicadas, desde enfrentamento direto até a falta de reconhecimento. Mas não baixamos a cabeça, vamos a luta!”.
Um dos jeitos que as garotas encontraram para se aproximar da comunidade foi subverter um dos maiores patrimônios culturais do nordeste e transformá-lo em uma ferramenta de conscientização.“Nossa região tem uma cultura muito rica, em que o cordel e seus jogos de palavra são usados para chamar a atenção das pessoas”, adiciona Rayonara.
Uma das idealizadoras do uso do cordel, Francisca finaliza: “O machismo é uma cultura que vai passando de geração em geração, assim como o cordel, que é uma cultura do nordeste, e que algumas vezes trata a mulher como objeto. Então, ao utilizá-lo, despertamos o interesse dos ouvintes, valorizando a nossa cultura e destruindo a do machismo”.
Redação: Cecília Garcia
Edição: Jéssica Moreira
Imagens: Divulgação