Criativos da Escola | Meninas negras criam movimento e enfrentam racismo por meio da arte no RS
botão menu

Meninas negras criam movimento e enfrentam racismo por meio da arte no RS

Temas

  • gênero e sexualidade
  • relações étnico-raciais

Porto Alegre - RS

Ano de Inscrição: 2019

status Finalista

ODS

28/08/2020 - Por Criativos

No Restinga, bairro pobre da capital gaúcha, Porto Alegre, estudantes negras desenvolvem habilidades, relações afetivas e autoestima 

Aos 12 anos, a autoestima de uma adolescente, que ainda está em construção, pode ser tão delicada e complexa quanto a estrutura de uma bolha de sabão. Basta uma pontada maldosa para mudar tudo. Maria Clara dos Santos sabe bem o que é isso. No ano de 2018, foi perseguida na escola e via a sua autoestima diminuir diante do espelho. Mas foi só em 2019, quando conheceu o Movimento Meninas Crespas que reuniu forças para se defender e gostar mais de si. 

A iniciativa, que alia o maculelê (uma dança afro-brasileira), performances poéticas, o idioma iorubá e rodas de conversas sobre autoestima, surgiu em 2015 em uma escola do ensino fundamental no bairro Restinga, em Porto Alegre (RS). Depois de ser constrangida por dois anos, uma estudante do ensino fundamental revidou os insultos e foi retirada da sala de aula pela monitora de turnos, a pedido da professora. Chorando, a menina pediu ajuda à mãe, que contatou a monitora escolar e juntas, mãe, estudante e educadora montaram rodas de apoio no recreio.

Quatro anos depois, a história se repetia com Maria Clara, em outra escola. “Eu nunca entendi muito bem porque me deram esse apelido feio, se era por causa da minha altura ou da minha pele, mas não importa porque agora eu sei me defender”, comenta a estudante do 6º ano na Escola Vinicius de Morais. 

Inaí Nascimento, mãe de Maria Clara, comenta que antes de fazer parte do Meninas Crespas, a filha era ainda muito tímida e isolada. Por isso, Inaí incentivou a filha a conhecer os projetos de uma ONG do bairro onde moram, e lá, ambas conheceram o movimento Meninas Crespas, que acontece também fora das escolas desde 2019. 

Hoje, Maria Clara é responsável pelas artes gráficas das redes sociais do projeto. A jovem  comenta que passou a pensar diferente depois de entrar no coletivo. “Eu nunca tinha parado para pensar nos assuntos que a gente conversa lá, e o movimento me ensinou a valorizar meu cabelo, minha história, minha cor. E também a cuidar dele [meu cabelo], porque eu não ligava, não cuidava muito”, comenta.

Foto de um palco de teatro bastante iluminado. Nele, há cerca de 15 crianças e adolescentes, meninos e meninas com roupas típicas gaúchas.

Apresentação Dia da Revolução Farroupilha a história dos negros lanceiros. Foto: Divulgação.

Das palavras que ferem às expressões que unem

Outra estudante que passou a ver o mundo com outros olhos foi Ane Ketelyn Ferreira Silva, de 12 anos, estudante do 6º da EMEF Mário Quintana. Ela entrou no projeto bastante tímida, andava com os cabelos presos e cabisbaixa, mas agora, além de ter cortado o cabelo, Ane também grava vídeos declamando poesias e leva os debates do grupo para a sala de aula. “Antes de fazer o vídeo da poesia do professor Oliveira Silveira, eu tive que fazer um trabalho do Peter Pan e eu fiz um Peter Pan Negro. Meu professor gostou muito e pediu que eu fizesse um vídeo recitando um poema sobre a cultura negra que eu gostasse e eu falei com minhas amigas que já falavam o poema no Meninas e gravei o vídeo”. 

Karina Pinto Ferreira, mãe de Ane, conta que ela fez a redação e o vídeo sozinha para uma atividade lúdica da escola durante a pandemia. “Ela passou a buscar mais informações, a escrever sobre assuntos mais polêmicos como racismo, LGBTs – a última redação dela foi sobre isso. Muitos assuntos também deixaram de ser tabu como menstruação, sobre gestação, a gente consegue desenvolver e conversar”.  

+ Leia também: 5 projetos de meninas negras que combatem o racismo e elevam autoestima

Foi na ONG Emancipa Restinga que Maria Clara conheceu as Meninas Crespas, mas foi na EMEF Senador Alberto Pasqualini que a história começou, em 2015. Perla da Silva dos Santos era a monitora de turnos que acolheu a aluna vítima de racismo e deu início às rodas de conversa naquele ano. 

“Eu não tinha muito espaço na escola, era nova lá e as pessoas não davam muita importância para uma educação antirracista. Mas nós seguimos nos reunindo, conversando no recreio, quando podia. Um dia, uma das meninas do projeto olhou para as colegas e falou ‘olha, nós somos um mar de meninas crespas!’. E foi aí que batizamos o projeto”, comenta a educadora. 

Ao longo das conversas, Perla, que é licenciada em dança, convidou as crianças a trazer o guerreiro maculelê que existia dentro delas para ter força e autoestima para lidar com as vivências dentro escola. “O maculelê é uma dança de guerreiro, mas não é um guerreiro violento, que sai batendo em todo mundo. É um guerreiro que toma a decisão certa em prol de si próprio e da sua comunidade”, comenta. 

A educadora conta que, a princípio, a coordenação pedagógica ficou apreensiva, mas as crianças gostavam das aulas e elas mesmas convidaram os pais para participar das oficinas, a ajudar na confecção dos saiotes e bastões, a encontrar os próprios guerreiros maculelê. Esse envolvimento familiar mudou o olhar da direção sobre o projeto e deu espaço para que ele crescesse. Cresceu tanto que ultrapassou os muros da escola e em 2018, o projeto foi convidado a falar sobre o envolvimento da comunidade na Escola da Ponte, em Portugal. 

Conhecimento, união e autoestima

No início de 2019 que o projeto quase acabou. A mantenedora da escola municipal onde o projeto acontecia desde 2017, não renovou o projeto e o ano letivo começou sem o Meninas Crespas. Os familiares foram até a escola pedir que o projeto continuasse, amparados na Lei 10.639/03 – que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas. A movimentação vingou e o projeto continuou existindo. 

No entanto, os pais do projeto se organizaram para encontrar uma sede provisória e ampliar as oficinas e as rodas de conversa para outras crianças do bairro ao redor da escola. Foi aí que fizeram uma parceria com a ONG Emancipa Restinga para usar o espaço e foi lá que Thamires Trindade, de 18 anos, conheceu o movimento. Estudante do 3º ano do Ensino Médio na Escola Estadual Raul Pilla, Thamires se interessou pelas oficinas de maculelê e de performance oferecidas pelo grupo, depois de uma visita à escola onde fez o ensino fundamental. Chegou lá interessada nas artes, mas foi fisgada pelas rodas de conversa. 

 

Thamires conta ainda que, apesar de gostar muito das performances e do maculelê, e de ter adquirido um olhar mais crítico para o racismo, o que mais a transformou foi a troca experiências com meninas mais novas. “Eu entrei com 16 anos e as meninas eram bem mais novas, com 8, 10 anos e essa foi a relação mais importante pra mim. Poder escutar os relatos das meninas que passaram por coisas que tu já passou e poder ajudar com uma palavra, sabe? Eu falei pra elas coisas que eu gostaria de ter escutado”, ressalta. Em 2019, as meninas do grupo, cerca de 20, foram modelos de fotos para uma agenda escolar do projeto. 

Foto de uma menina em pé sorrindo com uma blusa preta e uma saia de palha. Ela está com um braço erguido e o outro para frente, com punhos cerrados. Ela sorri para a foto.

Maria Clara do Nascimento, 12, vestida para o maculelê. Foto: Arquivo Pessoal

Autoconfiança e empatia

A educadora Perla acredita que a principal mudança é a postura das crianças. “Quando contamos a história negra, a história da resistência dos guerreiros, dos reis e rainhas, contamos uma história de liderança e eles começam a se identificar. E aí eles percebem que eles também estão fazendo história hoje, com essas conversas, com as danças, quando uma aluna solta o cabelo’”, comenta. 

O projeto acolhe meninos e crianças brancas, e essa é uma das coisas que Ane gosta mais. “Lá a gente fala muito sobre se colocar no lugar do outro, porque às vezes a gente pensa só no nosso ponto de vista e não no dos outros e acaba machucando e lá a gente pensa em todo mundo, no coletivo”, comenta a estudante.

As performances poéticas e de maculelê são ensaiadas periodicamente e decididas em conjunto dias antes da apresentação. O grupo se apresenta em praças do Restinga, em outras escolas e até na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Quando a gente trabalha a poesia, a performance, eles começam a se apropriar da arte, da dança, para contar a própria história. Essa educação voltada para o sensível faz muita diferença porque a gente vê alunos mais sensíveis, mais engajados, mais responsáveis no dia a dia”, avalia Perla. 

A Maria Clara agora que está com a autoestima mais elevada e também fez mais amigas. A autoconfiança mudou tanto que fez com que, além de se voluntariar para cuidar das artes gráficas e redes sociais do projeto, Maria Clara também se envolvesse mais nas danças e performances. “Eu gosto das apresentações de dança e das mensagens que elas passam. É uma mensagem de incentivo e empoderamento, aceitação”. Ah, e ela também tem planos para o futuro. “Eu quero ser advogada, porque eu acho que eu tenho o dom muito bom de argumentar e de discutir. E acho que eu gosto disso, eu também gosto de fazer outras coisas, mas o que eu pretendo mesmo é ser advogada”, finaliza.

Redação: Keyty Medeiros
Edição: Helisa Ignácio

Política de Privacidade e Cookies

O CRIATIVOS DA ESCOLA, uma iniciativa do Instituto Alana utiliza cookies que são necessários para o funcionamento adequado de suas páginas. O CRIATIVOS DA ESCOLA também poderá utilizar os cookies para melhorar a sua experiência de acesso, permitir o início de sessões seguras, gerir a sessão, gravar os detalhes de seu início de sessão, funcionalidades das páginas, coletar estatísticas e oferecer conteúdos adequados aos seus interesses.
Para mais informações, consulte a nossa Política de Privacidade através deste link.

Aceito